Sunday, March 29, 2009

Qual a medida da punição?


Um quase sequestro ou um quase assalto. A nova modalidade de crime (nem tão recente assim) fez com que o casal formado por Sérgio Faria Lemos da Fonseca Júnior, 62, e Adriana Maria Machado, 57, pagasse uma conta de cigarros, uísques, produtos importados e chocolates no valor de R$ 1,8 mil. Seria trágico, não fôsse cômico. Um dos três assaltantes tinha 14 anos (e certamente é chocólatra). As vítimas sequer foram agredidas. O mais triste na história, na verdade, foi sua repercussão. O plenário do Senado aprovou no último dia 24 um projeto que tipifica o tal assalto de chocolates como crime hediondo, punível com 6 a 30 anos de prisão. Nem se fosse o premiado chocolate de Willy Wonka ou uma tonelada de Pierre Marcolini. Sem querer debochar dos assaltados, mas é preciso mais coerência no código penal. Não podemos, no calor do momento, aumentar de modo desmedido a pena de certos crimes só para aparentar justiça, apelando ainda para a comoção popular nos veículos de comunicação. Que triste pagar a compra dos ladrões... mas para mim, é o equivalente a roubo e assalto. A pena máxima do sequestro relâmpago será para casos em que houver morte da vítima, com pena entre 24 a 30 anos. É maior do que para homicídio qualificado, que tem pena mínima de 12, e máxima de 30 anos; e o dobro do que para homicídio simples. Felizmente, especialistas da área do direito criminal concordam comigo e pressionam o presidente Lula para que ele não sancione tal projeto sem cabimento. A "ilustre" proposta, do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), deseja tornar o assalto dos chocolates mais grave do que matar, estuprar (6 a 12 anos), roubar (4 a 10 anos), cometer cárcere privado a outrem (1 a 3 anos), traficar mulheres para outros países (3 a 8 anos), traficar drogas (5 a 15 anos) e, até mesmo, sequestrar (8 a 20 anos). Oras, dava tempo então para comprar mais chocolates, passando das 24 horas que caracterizam um sequestro não-relâmpago. De acordo com o senador, a vítima sofre um trauma irreparável. Talvez ele acredite, realmente, que o trauma é maior do que ser vítima de estupro, de tráfico humano, de sequestro violento, de tráfico de drogas ou perder um ente querido. Chocolatezinho caro!

Fonte: Conjur

http://www.conjur.com.br/2009-mar-28/especialistas-pedem-veto-projeto-trata-sequestro-relampago

Monday, March 16, 2009

O falso mito do dom

A maioria das pessoas acredita que profissões do campo artístico e esportivo requerem um talento especial, uma espécie de bênção divina que torna alguns seres superiores aos meros humanos comuns. Eles são encarados pela sociedade como portadores de características extraordinárias desde o seu nascimento, como se tal indivíduo fosse feito pra arte ou para o esporte. É o que chamamos de “dom”. O dom seria, para quem nele crê, algo mágico que faz com que o músico simplesmente toque o instrumento sem treino ou dedicação. Essa crença é uma herança que vem do romantismo. Os artistas românticos acreditavam realmente que alguém fosse capaz de pegar um pincel e “se descobrir pintor” na primeira tela, sem nenhum conhecimento de desenho ou pintura. Ou ainda que alguém pegasse a caneta e as palavras surgissem de forma sublime e inexplicável. Essa corrente de pensamento influenciou nossos costumes e crenças, tendo como origem a mentalidade cristã, e o mito de dom tornou-se uma verdade absoluta, que só serve pra desanimar milhares de aspirantes a músico, inconformados ao não dominar o instrumento pretendido na primeira aula. A ciência na área do aprendizado nunca afirmou a existência de dom. O que as pesquisas mais recentes descobriram é que existem diferentes tipos de inteligência, como por exemplo, a inteligência emocional. Antigamente, apenas o indivíduo capaz de lidar com a linguagem das ciências exatas era considerado inteligente. Ainda bem que essa baboseira caiu por terra, e hoje a ciência reconhece a facilidade em lidar com qualquer tipo de linguagem como uma inteligência. É aqui que está a palavra chave: linguagem musical. Essa facilidade em aprender um instrumento, mas ser um fracasso no esporte, é ainda intrigante para a ciência. Uma vez que o QI – aquela inteligência de raciocínio lógico – foi comprovada como sendo genética há muito tempo, os cientistas teriam tudo para afirmar que qualquer inteligência é genética. Como se explicaria, então, que dois irmãos possuam talentos completamente distintos?Aqui entra outro fator determinante, que é o interesse pela coisa. O que nos faz comprar um instrumento musical e gostar de hamburguer ao invés de brócolis é entendido como influência do meio social. Daí se explicam filhos de músicos que se tornam músicos. Mas voltando ao caso dos irmãos, os gêmeos com gostos e personalidades distintas são um belo exemplo de como o meio é determinante. Cada um receberá influências peculiares, e por isso tornam-se diferentes mesmo geneticamente iguais. Por isso, músicos que crescem no meio musical adquirem a linguagem desde cedo e apresentam facilidades no aprendizado. Mas isso não é motivo pra ninguém desistir. Com certeza você viu alguém tocando antes de decidir aprender a tocar. E você deve checar a qualidade dessas influências independente do tipo de som que aprecie. Sim, porque bons músicos ouvem boa música. Aprendemos através da imitação desde criança: os movimentos dos adultos para aprender a andar, o modo de comer, a fala, a educação etc. E também adquirimos a linguagem daquilo que ouvimos. Ninguém se torna bom escritor lendo Sidney Sheldon a vida toda. Pense nisso. Se você já tem mais interesse por música do que pelo esporte ou exatas, é bem provável que compreenda melhor a linguagem musical. Até porque ninguém gosta de algo que julga difícil. O que não deve ser confundido é a facilidade com a linguagem musical com ausência da necessidade de estudos e dedicação. Muita gente desanima aqui: acredita que “ter o dom” significa tocar sem aprendizado. Esse sujeito, que compra um instrumento na tentativa de saber se “tem o dom”, nunca vira músico. Ele desiste ao esbarrar na realidade de que, assim como escrever bem requer todo o conhecimento gramatical de uma linguagem, tocar um instrumento implica em horas e horas de estudo. Ele descobre que mesmo gostando de ouvir música a vida toda, isso não o tornou instrumentista, e que é preciso muito mais do que apenas gostar de ouvir música. O músico precisa gostar de estudar seu instrumento acima de tudo.
Acredite: essas lendas de caras que sentam e tocam são usadas apenas com o intuito de desanimar você. Quem não acompanha o dia a dia de um músico não sabe quantas horas de estudo foram dedicadas, e acredita quando alguém diz que “nem treina direito”. Infelizmente, muitos músicos acham feio dizer que treinam, que tem professores e que são estudiosos. Eles desvalorizam seus mestres e reforçam o mito da ausência de estudos. Geralmente são inseguros e gostam de parecer que “tem uma espécie de dom excepcional” que o faz superior aos demais. Conheço muitos que estudaram e depois se intitulam autodidatas. É triste admitir, mas o artista está no grupo mais presunçoso e arrogante da sociedade. O mestre deveria ser valorizado, mas não é o que ocorre. A verdade é que você toca o quanto você estuda. Talvez seja por isso que somos tão admirados como sendo especiais, já que uma pequena minoria consegue se dedicar pra valer à música. Quem não tem paciência desanima dos exercícios e da técnica. Mas lembre-se que ninguém vira jogador de futebol jogando preguiçosamente apenas aos domingos, e sem nenhuma disciplina. Os esportistas também seguem uma rotina de estudos – muitas vezes cansativos – mas que os auxiliam a desenvolver a coordenação motora exigida naquele esporte. E aqui não se trata apenas de quantidade, mas da qualidade do treino. Aquelas dicas que você já está careca de saber, como ter um metrônomo, um pad de estudos, procurar um bom professor, estudar os seus pontos fracos etc. Por falar em coordenação motora, vamos derrubar outro mito. A bateria exige coordenação motora específica, própria da sua linguagem. Por isso, mesmo que você tenha coordenação em malabarismos de circo, isso não implica pular etapas nos estudos. Muitas vezes um aluno que já possui uma coordenação mais apurada – porque já exerceu atividades como esportes, por exemplo – é encarado como mais talentoso. Isso não é verdade e você não deve desanimar quando alguém lhe disser que, o exercício que você demorou 5 dias ele pegou em meia hora.
As diferenças de coordenação entre pessoas que nunca estudaram bateria são mínimas e não devem ser encaradas como obstáculos negativos. Muitas vezes, o que faz um músico ou atleta acertar o exercício pretendido mais rápido que outra pessoa é a concentração. A concentração é fundamental na forma como você estuda. Reserve um espaço confortável, iluminado, limpo, sem elementos de distração. Estudar 5 minutos e parar 10 para ir ao banheiro, depois beber água, voltar a estudar mais 5 minutos e parar pra atender ao telefone é uma péssima forma de estudo. Proponha estudar pelo menos uma hora seguida, e não deixe que nada o distraia. Se você é autodidata, provavelmente não teve orientações sobre o quê, quanto e como estudar. Um baterista que fez um ano de aula de forma dedicada toca melhor do que quem desperdiçou anos naquela bandinha de rock de sempre. Conheço bateristas que tocam as mesmas coisas há dez anos. Evoluíram muito nos primeiros anos (quando estudaram) e depois julgaram que já era suficiente pra tocar o que queriam. Pensar assim é um erro enorme, mas muito comum. Entretanto, isso não significa falta de talento. Eu já passei por isso e sei como é: você passa horas tocando músicas e exercícios de forma aleatória e não entende porque não evolui. Quem começa sem orientação demora pra perceber a importância da técnica e cai no desânimo. Quer um exemplo olímpico? Guga tem sido um fiasco absoluto, porque quem chega no auge acredita que seu tempo de aprender acabou, e pára de treinar com tanto empenho. Logo, uma legião de admiradores passa a jogar melhor que ele. É outra regra: um músico ou atleta nunca deve parar de treinar.
Organizar seus estudos é o próximo passo. Suas aulas escolares tinham um cronograma lógico, e você não aprendeu logaritmos antes da tabuada e operações fundamentais. Portanto, não atropele querendo aprender jazz se você não dominou os conceitos do rock, ou ainda dominar solos fenomenais sem saber aplicar os rudimentos. Os resultados de estudar técnica não demoram pra aparecer. E acredite: sua resistência em dedicar-se aos exercícios diminuirá na medida que você evoluir e perceber a relevância da rotina de estudos. Quem usa a desculpa do dom pra justificar preguiça ou falta de paciência em aprender não leva adiante. Somente quem se dedica com afinco está apto a ser músico. E essa que é a graça e a beleza de ser músico.