Tuesday, April 17, 2007

As contradições do aborto

O ministro da Saúde José Temporão mexeu na ferida moral da igreja ao propor a descriminalização do aborto até 12 semanas de gestação no Brasil. A tendência mundial é de aceitação do aborto, como ocorreu recentemente em Portugal e México, e como já acontecia na França e Eua. Mas a questão tem mais lados do que o dualismo simplório de “contra” ou “a favor”, como pregam os estudiosos do assunto.
Pra começar, o argumento de “defesa da vida” se torna fraco quando temos o aborto em casos de estupro amplamente aceito na sociedade, a fertilização artificial, a lei de biossegurança permitindo o uso de embriões para experiências, a sugestão da pena de morte e eutanásia por boa parte da população (inclusive pelos contrários ao aborto). Diante de tanta contradição, o repúdio contra o aborto é claro: não se defende a vida do futuro bebê, mas a condenação da mulher que fez sexo. É notadamente moralista e de cunho religioso. E sendo nosso Estado laico, o argumento é absolutamente inválido. Ironicamente, o único posicionamento pró-vida sensato vem da própria Igreja Católica, que é contra qualquer manipulação da vida, fertilizações in vitro, aborto até em caso de estupro, pena de morte e células-tronco. Os seus seguidores, porém, não possuem a coerência de argumentação e não seguem os preceitos do vaticano há muito tempo.
Aqueles que defendem o direito de escolha o fazem muito mais em defesa de vidas do que os fundamentalistas morais. Trata-se da vida da gestante, do pai, dos familiares, da sociedade que paga pelo nascimento de marginais e da qualidade de vida do próprio bebê, que deveria nascer somente quando existisse estrutura psicológica, financeira e a gravidez fosse desejada.
Outro argumento é a definição da vida humana a partir da própria lei brasileira, que considera o desligamento do sistema nervoso central como fim da vida, e, portanto, seus órgãos podem ser retirados e doados. Seguindo essa lógica, é sensato dizer que a vida também começa quando surge o sistema nervoso central, ou seja, com 12 semanas de gestação. A Igreja discorda dessa tese e defende que a vida começa na fecundação. Por que um país tão católico seria, então, líder mundial no consumo da pílula do dia seguinte? Será que os católicos não compartilham da visão do Papa? Por que defender a criminalização pelo viés religioso, então?
O Brasil trata o aborto de forma contraditória. É um país que ficou no meio do caminho, sem argumentos éticos, sociais, morais, religiosos ou feministas definidos. Células tronco-embrionárias foram permitidas, pílula do dia seguinte também. Já é possível conseguir autorização judicial pra aborto em casos de anencefalia e, na realidade, o aborto não é punido como prega a constituição. É um problema que afeta a sociedade inteira, independente da posição que você tome.
Mas seria ilusão pensar que o tema foi posto em pauta “em defesa do direito de escolha da mulher”. O fato é que o aborto ilegal é extremamente caro aos cofres públicos, e sempre que se fala em dinheiro, os políticos começam a discutir um assunto. Mesmo sendo a favor do aborto, eu considero necessária a adoção de políticas eficazes de distribuição de métodos contraceptivos, de educação e de planejamento familiar antes da aprovação do projeto. Como sempre, o governo enfia a carruagem na frente dos bois, e almeja liberar aborto no cenário catastrófico de prevenção à gravidez que vivenciamos hoje. O SUS, quando muito, distribui a pílula microvilar e camisinhas. Milhares de mulheres não se adaptam ao medicamento oferecido, necessitando de anticoncepcionais de última geração que o governo não oferece e que pesaria no orçamento da família humilde. Métodos alternativos para as mulheres que não podem fazer uso de pílulas, como mirena, anéis hormonais, DIU, direito inquestionável à laqueadura, diafragma, injeções hormonais etc sequer foram sugeridos pelo Ministro da saúde. A única concordância entre os pró-vida e os pró-escolha na questão do aborto é que o acesso aos métodos de prevenção é fundamental. Condenar as mulheres pobres tão somente ao recurso do aborto está longe de ser uma política de saúde justa.
A idéia de plebiscito popular é medíocre, dada a escassa cultura do país e a influência da Igreja sobre as camadas populares, que interfere no exercício do Estado laico, como prega a própria constituição. Contraditoriamente, a classe baixa é a mais prejudicada pela ilegalidade do aborto, e a que mais recorre ao procedimento. Mas não teria capacidade de reflexão sobre a complexidade do problema. De acordo com um ensinamento filosófico grego Sêneca (29 d.C), “A opinião pública pode ser a pior das tiranias”.
Na verdade, a aborto está ganhando um contorno perigoso entre aqueles que defendem sua legalização. Defende-se o aborto para “quem não tem condições financeiras de criar”, e não o direito de decidir se é o momento para ter um filho. Ainda mais assustador é o parágrafo do projeto que dá direito de veto ao médico, quando este julgar que o aborto fere os “seus princípios”. Basta ver o que os médicos fizeram com o direito à laqueadura para toda mulher acima de 25 anos, conforme estabelece a lei. Na prática, somente mulheres com dois filhos ou mais, e pobres, conseguem uma laqueadura, pois estes são “os critérios da ética médica”. Eu temo que com o aborto aconteça o mesmo: os médicos estipulem a partir da sua visão de mundo particular quem deve abortar. E não é difícil imaginar que os critérios serão os mesmos para laqueadura: mulheres pobres e cheias de filhos. A perversidade disso é que a definição de pobre sempre esbarra no racismo.
Ao invés do Brasil seguir o caminho democrático da França ou dos Eua, está adotando uma postura digna de países fundamentalistas, como o Egito, onde o aborto é obrigatório em certos casos e a mulher continua sem direitos nenhum de escolha, nem mesmo de ter o bebê. Na China, o aborto é um recurso para cumprir um controle de natalidade obrigatório e na Índia, abortam-se meninas. Estipular quem tem direito ao aborto, ou quem deve ser obrigada a fazê-lo, seguindo argumentos sociais, morais, religiosos, de redução de criminalidade ou quaisquer que sejam, é uma atitude fascista e totalitária. O aborto deve ser um direito para todas, como funcionam nas democracias verdadeiras. Mas o direito de ser mãe também deve ser preservado. Caso contrário, é melhor permanecer proibido: políticas fascistas e de eugenia já foram ultrapassadas nos países civilizados.